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Baixar os impostos para combater a inflação?

A direita foi responsável pelo maior aumento de impostos da história da democracia portuguesa, mas nem por isso deixa de viver obcecada com a redução de impostos. Diz que serviria para mitigar a perda de poder de compra dos trabalhadores. Claro que aumentar salários está fora de questão, é uma opção de classe.

Crónica 74
2 Março 2023

Vivemos um contexto de aumento generalizado dos preços acompanhado de estagnação salarial. Nesse contexto, a direita portuguesa (e também o PS) têm proposto a redução de impostos para reduzir os preços aos consumidores. De resto, esta constatação é redundante. Atualmente, a direita não tem nenhuma ideia inteligível que não seja a redução de impostos. Uma obsessão curiosa vinda de quem foi responsável pelo maior aumento de impostos da história da democracia portuguesa. Sobre as mentiras e deturpações da direita portuguesa sobre a evolução recente do nosso sistema fiscal, já escrevi aqui, aqui e aqui.

Nesta instância particular, a redução de impostos serviria para mitigar a perda de compra sofrida pelos trabalhadores. Claro que a hipótese de aumentar salários de forma a compensar a inflação ou reduzir os lucros recorde das empresas, em particular nos sectores oligopolísticos, é coisa que está fora de questão. É uma opção de classe e é por isso que a opção é esta. Porque a ideia é sedutora e, aliás, já foi aplicada pelo Governo em sectores como a energia ou a habitação, vale a pena descascar as várias camadas de equívocos em que direita aposta.

1. Tirar dos trabalhadores para dar aos trabalhadores?

Uma primeira crítica frequentemente ensaiada até à esquerda é a de que esta medida mais não faz do que tirar aos trabalhadores em salário indireto (serviços públicos, prestações sociais, investimento, etc.), por via da redução da receita do Estado, aquilo que lhes daria em salário direto. A direita, porque pretende a destruição do Estado social, mataria dois coelhos de uma cajadada: protegia os lucros das grandes empresas e minava as condições de um Estado social já hoje depauperado. A crítica é justa, mas a realidade é pior do que isso.

2. Dos mais pobres para os remediados?

Uma segunda crítica é a de que os principais beneficiários do Estado social são os mais pobres, entre trabalhadores e pensionistas. E são também estes que pagam menos ou nenhuns impostos sobre o rendimento (cerca de metade dos portugueses não têm coleta de IRS). Assim, a redução do IRS, que tem sido defendida pela IL e pelo Chega, é uma medida cujo efeito esmagador será sentido pelos rendimentos acima da média e, sobretudo, pelos mais ricos.

3. Ou dos trabalhadores para os oligopólios?

Em relação à redução dos impostos sobre o consumo, o que a realidade já mostrou, nestes e noutros contextos, é que a redução da tributação indireta em sectores oligopolísticos é absorvida pelas margens de lucros das empresas desses sectores, imediatamente ou ao longo do tempo. Na finança, na distribuição, na energia, nas comunicações, o que predomina são estruturas oligopolísticas. Nestes mercados, os preços ao consumidor (que incluem impostos) são determinados pelas condições de pelas características dos bens e dos mercados e, sobretudo pela concertação de preços entre as empresas, de forma a maximizar os lucros. A redução em nada afeta essas condições e, portanto, em nada afeta a determinação dos preços. A fantasia dos mercados de concorrência perfeita em que os preços refletiriam a estrutura de custos das empresas apenas existe nos manuais. Na realidade destes sectores fundamentais, não há concorrência. Nem perfeita, nem imperfeita. Nenhuma.

4. Então e a concorrência?

É por isso que os reguladores, invariavelmente capturados e sem escrutínio democrático relevante, cumprem também a função de bodes expiatórios permanentes para as consequências da total ou quase total privatização de sectores absolutamente estratégicos. Nos sectores em que a concertação de preços é demasiado evidente para esconder, a direita direciona a indignação para a regulação pública dos sectores privados, uma tarefa deliberadamente tornada impossível. A regulação existe para falhar. O que não falha é a propriedade pública. Já os liberais, esses, defendem o poder económico. A concorrência é só conversa.

5. Isentar e tabelar bens essenciais, aumentar salários, conter lucros.

Assunto diferente é, por exemplo, a redução ou eliminação do IVA sobre cabazes de bens essenciais (já lá vamos). Essa medida, sendo universal, pode ter uma incidência proporcionalmente superior nos sectores cujo rendimento é esgotado nesses bens. Mas essa política só é eficaz num contexto de controle absoluto dos preços dos bens afetados, que impeça a apropriação pelos grandes supermercados. E nunca poderá ser vista como alternativa a uma política salarial de atualização dos salários, no mínimo, ao ritmo combinado de inflação e produtividade. Nem como alternativa a uma pesada tributação dos lucros oportunistas a que estamos a assistir e que até o BCE aponta como grandes motores da inflação.

6. O que realmente importa.

Depois há o que é estrutural. A situação que vivemos mostra a catástrofe que foi a obsessão privatizadora em que PS e direita competiram durante décadas. Outros países tiveram a sensatez de, pelo menos, não ir tão longe, e mantiveram empresas públicas em sectores estratégicos, capazes de disciplinar os privados e prosseguir estratégias de política industrial. Aqui, a direita e ganhou o debate e o PS foi na onda, por captura ou mesmo por convicção.

7. A direita não defende o mercado, defende o dinheiro.

O que todo este debate e o discurso da direita mostram é que a direita não quer saber de concorrência ou de “mercados não-falseados” ou de preços justos ou de nada disso. A direita representa o poder económico sem reserva nem pudor. Esse é o único liberalismo realmente existente. E o PS atual apenas junta a essas escolhas estruturais medidas piedosas que fariam corar de vergonha um democrata-cristão dos antigos. Não há saída para o país que não comece pelo balanço de uma hegemonia liberal que domina há décadas a política económica do país.

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