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Agora também é tudo fascismo

Moderar é deixar andar. E mesmo que corra mal, – ou quando correr mal – vamos sempre poder dizer que estivemos do lado dos moderados, ponderados e despolarizados, com toda a superioridade moral que isso nos confere.

Crónica 74
13 Julho 2021

É provável que não fosse logo esta a abordagem que esperavam de mim, não só por ser a crónica debutante, como por ser parte deste projeto jornalístico (não sei se projeto é o termo mais adequado, mas é abrangente o suficiente porque tudo é um projeto) que se diz uma ferramenta democrática e, por lógica oposição, antifascista / anti extrema-direita / anti direita radical / anti pessoas cujo objetivo de vida é ser infeliz e tentar que o maior número possível de pessoas também o seja.

A bem da verdade, até podíamos falar da pertinência deste projeto. Será mesmo necessário? Fazia falta ao país? Duvido muito, e acho até que pode ser contraproducente. É que de tanto se falar em fascismo (ou nas outras denominações supracitadas que não vou repetir ao longo da crónica, podendo vocês escolher a que mais vos aprouver), qualquer dia há mesmo fascismo.

Sabemos de trás para a frente que é assim que as coisas funcionam. Nunca é demais lembrar que, em raciocínio idêntico, Rui Rio disse que de tanto se falar de racismo em Portugal, qualquer dia havia mesmo. Mentiu? Não mentiu. Estes fenómenos como o racismo, o fascismo, a homofobia ou semelhantes, só se tornam prevalentes (podia dizer “reais”, mas creio que aí já estivesse a exagerar um pouco) quando se fala deles.

Por exemplo, se a população não se irritar demasiado com este ou aquele episódio esporádico de racismo quotidiano, se ninguém entrar em alvoroço só porque um deputado propõe a catalogação étnica da população (só dos pobres, claro), e se não houver grandes convulsões sociais só porque um actor negro é assassinado enquanto lhe gritam que vá para a “terra dele”, muito provavelmente evita-se que o racismo se espalhe.

O mais eficaz é não levantar grandes ondas para não incomodar ninguém. Claro que isto é dito sempre por alguém que nunca sofreu de qualquer tipo de discriminação seja pelo que for, mas não é por isso que não tem direito a omitir a sua sabedoria estratégica, como um branco que, ao ouvir um negro falar de racismo sistémico, lhe dá uma palmada nas costas e lhe diz “vá, também não é assim tão grave como tu achas”.

E é nesta senda – que, erradamente, pode parecer carregada de soberba e privilégio, quando é apenas bem-intencionada – que o intuito deste meu primeiro texto é o apelo à moderação, à calma e à importância de não achar logo que isto ou aquilo é fascismo, só porque parece mesmo muito ser fascismo.

Vejo, por exemplo, que muita gente se exalta com os académicos (não tenho a certeza do significado disto, mas sei que é assim que se classificam) que tecem loas ao Estado Novo em palestras, crónicas de jornais ou comentários televisivos. Mas haverá motivo para tal? Como arautos da moderação que devemos ambicionar ser, temos de ser capazes de reconhecer que, realmente está bem visto, sim senhor, até houve coisas boas durante o Estado Novo, apesar de outras que possam ter sido um pouco mais chatas.

Havia fome, miséria, censura, opressão, prisão de oponentes políticos e tortura, mas ao menos não participámos na guerra (a mundial, porque a colonial matou centenas de milhares de pessoas, mas não importa para o caso) e aumentámos a taxa de alfabetização, o que permitiu que muito mais pessoas conseguissem escrever “tenho fome”.

Há quem acuse estas pessoas, ou quem equipara Bloco e PCP ao Chega, ou quem acha tão extremista propor a semana de trabalho de 35 horas como propor uma cerca sanitária a uma etnia, de estarem a branquear o Estado Novo e estender a passadeira ao ressurgimento do fascismo, mas na verdade estão só a ser pessoas justas e moderadas que conseguem ver que “há gente boa nos dois lados”.

Agora, evidentemente, se se começa logo a acusar este tipo de pessoas de serem coniventes com o fascismo só porque parece mesmo que estão a ser coniventes com o fascismo, o que é que acontece? Lá está, isso mesmo. Obrigamos, com o nosso radicalismo e falta de moderação, a que estas pessoas – totalmente contra a sua vontade – tenham mesmo de o fazer (ainda mais). “Veem o que é ser conivente com o fascismo? Agora é que sou mesmo, apesar de não querer. Não me deram alternativa e agora sou obrigado a defender as ideias que sempre defendi, só que fazendo-o todos os dias em vez de uma vez por outra.” Trágico.

Portanto, se não queremos que estas pessoas fiquem mesmo, mesmo, de extrema-direita e a dizer-nos - e bem - “Agora também é tudo fascismo!”, temos de ser nós a moderar-nos e a saber aceitar que o PSD ter uma candidata autárquica que chama “gentalha” a pessoas racializadas e que é obcecada com a autoridade securitária, é possivelmente preocupante, mas também não é preciso exagerar.

Moderar é deixar andar. E mesmo que corra mal, - ou quando correr mal – vamos sempre poder dizer que estivemos do lado dos moderados, ponderados e despolarizados, com toda a superioridade moral que isso nos confere.

Despeço-me com um abraço a toda a gente, e dizendo que estou moderadamente feliz e orgulhoso por fazer parte deste projeto, que isso de ser emoções fortes também só revela falta de carácter.

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