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Abril ainda é das águas mil?

Os fenómenos climáticos e meteorológicos extremos ameaçam a sobrevivência de milhões de pessoas, sobretudo no Sul Global. É provável que com as emissões de gases de efeito de estufa deduzíveis das contribuições nacionais façam com que o aquecimento exceda os 1,5°C no século XXI.

Crónica 74
20 Abril 2023

A 18 de abril de 2023, quando escrevo esta crónica, a previsão do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) para Santarém, a capital de distrito com a temperatura máxima mais elevada, é de 32°C; para Coimbra, onde vivo, é de 29°C. No início de abril, o território de Portugal continental foi atravessado por uma onda de calor, isto é, um intervalo de pelo menos seis dias consecutivos em que a temperatura máxima diária é superior em 5°C ao valor médio diário no período de referência. De acordo com o Boletim Climático do IPMA, março foi um mês quente e seco em Portugal continental; a 31 de março, 48% do território estava em seca meteorológica.

Eventos extremos como as ondas de calor e as secas prolongadas tornar-se-ão mais frequentes e severos à medida que as alterações climáticas se intensificam. Há mais de 30 anos que o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) alerta para os riscos associados a este fenómeno, através dos seus exaustivos relatórios de avaliação (o primeiro foi publicado em 1990). A diferença fundamental é que, atualmente, esses riscos já não são longínquos e abstratos, são bastante reais, sobretudo para as aproximadamente 3,3 a 3,6 mil milhões de pessoas que, segundo o recente Relatório Síntese do IPCC, “vivem em contextos altamente vulneráveis face às alterações climáticas”.

Se, durante décadas, os cientistas climáticos foram cautelosos no estabelecimento de um nexo causal direto entre alterações climáticas e eventos extremos específicos, com o robustecimento da evidência científica é possível ao IPCC afirmar, com elevado grau de confiança, que “as alterações climáticas de origem antropogénica já estão a afetar muitos extremos meteorológicos e climáticos em todas as regiões do mundo”. Os fenómenos climáticos e meteorológicos extremos ameaçam a sobrevivência de milhões de pessoas, sobretudo no Sul Global, ao comprometerem a sua segurança alimentar e hídrica, fontes de rendimento ou ainda os seus modos de vida.

Elaborado por mais de 90 cientistas, o Relatório Síntese, divulgado em março, sumariza as principais conclusões dos trabalhos do sexto ciclo de avaliação. As primeiras três secções do Sexto Relatório de Avaliação, publicadas entre agosto de 2021 e abril de 2022, reúnem os contributos dos Grupos de Trabalho I, II e III, responsáveis, respetivamente, pela avaliação da base científica física do sistema climático e das alterações climáticas, pela aferição da vulnerabilidade socioeconómica e dos sistemas naturais em relação às alterações climáticas, as suas consequências negativas e positivas e as opções de adaptação, e pela ponderação de opções de mitigação.

A mensagem do IPCC tem pouco de original, especialmente para os movimentos pela justiça climática que há anos a repetem incessantemente: “as alterações climáticas são uma ameaça ao bem-estar humano e à saúde planetária. Há uma janela de oportunidade que se fecha rapidamente para assegurar um futuro habitável e sustentável para todos”.

Criado em 1988 pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente e pela Organização Meteorológica Mundial, o IPCC foi muitas vezes acusado de excesso de zelo e de conservadorismo nas suas projeções, o que seria resultado de pressões e ingerências políticas (os cientistas são nomeados pelos estados-membros).

Não está previsto que o próximo relatório de avaliação seja lançado antes de 2030, pelo que este Relatório Síntese constituirá a base científica para as negociações da Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP28), que irá decorrer em dezembro, nos Emirados Árabes Unidos – um petroestado autoritário, não esqueçamos. Recentemente, os oradores de um evento sobre crise e saúde (Forecasting Healthy Futures), que decorreu em Abu Dhabi, foram “aconselhados” a não criticar empresas, ou a protestar, o que permite antever um ambiente de intimidação favorável ao poder entrincheirado do capitalismo fóssil e das suas estratégias de desresponsabilização pela crise climática.

Este será, provavelmente, o último relatório publicado no intervalo temporal em que, segundo as trajetórias globais modeladas pelo IPCC, ainda é possível limitar o aumento da temperatura média global a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais – limiar a partir do qual os danos causados ao sistema climático terrestre se tornarão rapidamente irreversíveis. Alcançar esse objetivo exige reduções imediatas e drásticas na emissão de gases com efeito de estufa (GEE), em todos os setores, até 2030.

António Guterres afirmou que este Relatório Síntese é um “guia de sobrevivência para a humanidade”, um guia para “desarmar a bomba do clima”. No seu habitual tom realista, referiu que “o nosso mundo precisa de ação climática em todas as frentes – tudo, em todo o lado, ao mesmo tempo”. A antecipação da neutralidade carbónica para 2040 (no caso dos países desenvolvidos) e o abandono dos combustíveis fósseis são algumas das prescrições para “manter o objetivo dos 1,5°C vivo”.

Todavia, o cenário não é animador: as emissões de GEE deduzíveis das contribuições nacionalmente determinadas (os compromissos assumidos por cada Estado para reduzir as suas emissões) tornam provável que o aquecimento exceda os 1,5°C durante o século XXI e tornam mais difícil que o aquecimento fique abaixo dos 2°C. Também o financiamento para medidas de mitigação e adaptação está aquém do necessário para alcançar os objetivos climáticos em todos os setores e regiões.

O slogan “mudar o sistema, não o clima” nunca foi tão pertinente. Não obstante, para evitar o seu esvaziamento, desvirtuamento e/ou cooptação é imperativo que seja acompanhado por um programa político que permita cortar drasticamente as emissões de GEE, abandonar definitivamente os combustíveis fósseis, aumentar a incorporação de renováveis na produção de eletricidade – no fundo, uma alternativa planeada e ecológica ao capitalismo fóssil.

De facto, a descarbonização em larga escala exige a reabilitação de instrumentos de planeamento democrático e de investimento público à escala nacional. Não será possível concretizar transformações sistémicas, cuja inevitabilidade é reconhecida pelo próprio IPCC, com base em lógicas de mercado. Sim, é mesmo preciso mudar de sistema em Portugal e por esse mundo afora.

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